Responsabilidade
Médico-hospitalar interpretada pelo STJ
Sumário:
1. Introdução;2. Responsabilidade do profissional médico em geral.
Responsabilidade Subjetiva; 3. Responsabilidade do Cirurgião
Plástico; 4. Responsabilidade pelo fato do serviço hospitalar. 5.
Conclusão
1. Introdução
Apurar-se a responsabilidade
civil na área médica não é tarefa fácil, notadamente quando
ainda existe grande discussão jurídica acerca das interpretações
de conceito basilares que são verdadeiras premissas para esta
caracterização, seja ela positiva ou negativa.
O operador do direito menos
antenado com o Direito Médico, ou aquele que se inicia no estudo da
responsabilidade médico-hospitalar, pode se surpreender com o sem
número de decisões discrepantes que vão desde aquelas
fundamentadas na clássica responsabilidade subjetiva do profissional
até as mais inovadoras que tem por fundamento a teoria do risco do
negócio, aplicando a responsabilidade objetiva pelo fato do serviço.
Assim, neste mar revolto de
precedentes é preciso que o operador do direito encontre um porto
seguro para encorar sua nau, sob pena de vê-la levada à pique pela
tormenta de uma tese mau formulada. Este ancoradouro pode ser
encontrado na construção jurisprudencial do STJ, objeto de nosso
estudo.
O STJ – Superior Tribunal de
Justiça tem ao longo dos últimos 10 (dez) anos construído sólida
e esmerada jurisprudência sobre o tema, notadamente quanto aos
seguintes aspectos que pretendemos abordar neste artigo:
responsabilidade do profissional médico em geral, responsabilidade
do cirurgião plástico, responsabilidade pelo fato do serviço
hospitalar.
Inicialmente, cumpre-nos destacar
que a competência em razão da matéria (natureza da relação
jurídica litigiosa) no STJ – Superior Tribunal de Justiça,
segundo o seu Regimento Interno (art. 9º., § 2º, III), é da
Segunda Seção, pois compete a mesma processar e julgar os processos
relativos a responsabilidade civil, sendo a Segunda Seção composta
pela Terceira e Quarta Turma do STJ. Em outras palavras a
responsabilidade civil médico-hospitalar (exceto quando há
responsabilidade do Estado) está sob os auspícios de dez Ministros
componentes da Terceira e Quarta Turma do STJ. (RI, STJ, art. 2º, “§
4º. As Seções compreendem seis Turmas, constituídas de cinco
Ministros cada uma”).
2. Responsabilidade do
profissional médico em geral. Responsabilidade Subjetiva.
De forma reiterada o STJ tem se
manifestado no sentido de que a culpa, em regra, é elemento
indispensável para a caracterização da responsabilidade civil do
médico,
seja durante a vigência do Código Civil de 1916, seja com o advento
do Código de Defesa do Consumidor, ou ainda após a vigência do
Código Civil de 2002 que nos trouxe em seu art. 927, parágrafo
único a responsabilidade objetiva em face do risco da atividade.
Atualmente é pacífica a jurisprudência do STJ quanto ao
entendimento da relação médico paciente como uma relação de
consumo e, por ilação, clara é a aplicação da regra contida no
parágrafo 4º. do art. 14 do CDC (Responsabilidade subjetiva dos
profissionais liberais). Neste sentido recente decisão da Quarta
Turma (destaques nossos):
DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE
CIVIL - ERRO MÉDICO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO.
ARTIGO 131 DO CÓDIGO CIVIL.
1. O sistema processual civil
abraça o princípio do livre convencimento motivado, que, inclusive
está positivado no artigo 131 do Código de Processo Civil,
impondo ao julgador a indicação dos motivos de suas conclusões.
Na hipótese em que a ação
proposta tem sustentação na existência de erro médico, uma vez
que realizada perícia, deve o julgador indicar os motivos pelos
quais resolve concluir pela obrigação de indenizar, tomando posição
oposta às conclusões do perito, mormente quando outras provas não
existem nos autos.
2.
A
responsabilidade do médico pressupõe o estabelecimento do nexo
causal entre causa e efeito da alegada falta médica, tendo em vista
que, embora se trate de responsabilidade contratual - cuja obrigação
gerada é de meio -, é subjetiva, devendo ser comprovada ainda a
culpa do profissional.
3. Recurso especial provido.
(REsp 1078057/MG, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA
TURMA, julgado em 10/02/2009, DJe 26/02/2009)
Assim, nas relações
médico-paciente em geral inexistem questões de alta indagação a
merecer aprofundado estudo no tocante a aplicação da
responsabilidade subjetiva, o mesmo não se podendo asseverar quanto
a responsabilidade
do cirurgião plástico.
3. Responsabilidade do
Cirurgião Plástico.
Para muitos operadores do direto
houve uma mudança de paradigma com a prolação da decisão do RESP
nº 81.101/99, momento em que toda cirurgia estética ou plástica
passou a ser tratada por parte da comunidade jurídica como sendo
indiscriminadamente uma obrigação contratual de resultado.
Eis a ementa do acórdão
retro-mencionado:
CIVIL E PROCESSUAL - CIRURGIA
ESTÉTICA OU PLÁSTICA -OBRIGAÇÃO DE RESULTADO (RESPONSABILIDADE
CONTRATUAL OU OBJETIVA) -INDENIZAÇÃO -INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA.
I - Contratada a realização da cirurgia estética embelezadora, o
cirurgião assume obrigação de resultado (Responsabilidade
contratual ou objetiva), devendo indenizar pelo não cumprimento da
mesma, decorrente de eventual deformidade ou de alguma
irregularidade. II - Cabível a inversão do ônus da prova. III
-Recurso conhecido e provido. (RESP nº 81.101/ Rel. Min. Waldemar
Zveiter, Terceira Turma, DJ de 31/05/99).
Inúmeros artigos, monografias e
dissertações foram escritas desde então, ora defendendo o
posicionamento do acórdão, ora tentando desconstruir o que fora ali
assentado. Juridicamente defensáveis, ambos os pontos de vista
apenas não podem ser adotados como verdades absoltas, posto que, de
fato, a verdade emerge do caso concreto levado a juízo, em face de
suas peculiaridades. O equívoco de muitos residia justamente neste
particular, ao deparar-se com um caso de cirurgia plástica,
sentenciar-se: obrigação de resultado.
Em verdade, após o advento do
RESP nº 81.101/99 o STJ vinha adotando de forma contínua a
responsabilidade objetiva para os casos de cirurgia
estética/plástica.
Fato novo, e alentador para os
defensores da obrigação de meio do cirurgião plástico, é que
alguns recentes acórdãos voltaram a abordar a conduta culposa,
mesmo em se tratando de cirurgia plástica. O que, no nosso sentir,
demostra um retorno à uma análise mais amiúde da culpa médica que
é insofismavelmente complexa e não pode ser dirimida com fórmulas
prontas. No acórdão do AgRg no Ag 818.144/SP houve o expresso
reconhecimento da negligência do cirurgião plástico por violação
de seu dever de informar acerca dos riscos do procedimento:
CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL.
CIRURGIA PLÁSTICA. DANO MORAL. O médico que deixa de informar o
paciente acerca dos riscos da cirurgia incorre em negligência, e
responde civilmente pelos danos resultantes da operação. Agravo
regimental não provido. (AgRg no Ag 818.144/SP, Rel. Ministro ARI
PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 09.10.2007, DJ 05.11.2007 p.
264)
O Ministro Relator Ari Pargendler
em seu voto, destacou inclusive que “a
culpa é um conceito jurídico e que pode ser revista no âmbito do
recurso especial”,
concluindo que “a
imputação da culpa constitui uma questão de direito apropriada ao
recurso especial”.
Cabe ao advogado hábil
explicitar claramente em seus recursos a questão jurídica da
imputação da culpa, prequestionado-a, de modo conseguir manejar sem
dificuldade o Recurso Especial.
Em outra decisão, esta datada de
2006, a Terceira Turma entendeu pela aplicação do parágrafo quarto
do art. 14 do CDC para um caso de imputação de erro médico que
teria sido praticado por um cirurgião plástico:
RECURSO ESPECIAL. ERRO MÉDICO.
CIRURGIÃO PLÁSTICO. PROFISSIONAL LIBERAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTES. PRESCRIÇÃO CONSUMERISTA.
I -Conforme precedentes firmados
pelas turmas que compõem a Segunda Seção, é de se aplicar o
Código de Defesa do Consumidor aos serviços prestados pelos
profissionais liberais, com as ressalvas do § 4º do artigo 14.
II -O fato de se exigir
comprovação da culpa para poder responsabilizar o profissional
liberal pelos serviços prestados de forma inadequada, não é motivo
suficiente para afastar a regra de prescrição estabelecida no
artigo 27 da legislação consumerista, que é especial em relação
às normas contidas no Código Civil. Recurso especial não
conhecido. (REsp 731.078/SP, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA
TURMA, julgado em 13.12.2005, DJ 13.02.2006 p. 799)
Em resumo, em que pese a
existência de inúmeros precedentes calcados na responsabilidade
objetiva do cirurgião plástico na cirurgias chamadas embelezadoras,
percebe-se uma tendência do STJ em analisar as questões relativas
ao erro médico sob a égide da conduta culposa, ainda que em certos
casos possa caracterizar-se a responsabilidade objetiva do cirurgião
plástico pela promessa de resultado, o que não é a regra.
4. Responsabilidade pelo
fato do serviço hospitalar.
No tocante a responsabilidade
hospitalar há que se distinguir inicialmente se o fato que se
constitui como objeto controverso da demanda é a responsabilidade
hospitalar pelo fato do serviço prestado pelo médico (atividade
médica em si) ou a responsabilidade hospitalar pelo fato da
internação. No primeiro caso estaremos diante da responsabilidade
subjetiva e, no segundo, responsabilidade objetiva.
Esclarecedor é o julgado abaixo
transcrito
que estabelece de modo conciso e claro que inexistindo culpa do
médico não poderá haver responsabilidade do hospital se fora
afastada a culpa médica. E, noutro extremo, haverá responsabilidade
objetiva do nosocômio quando o dano decorrer diretamente da
atividade empresarial do estabelecimento hospitalar, o chamado fato
da internação, que congrega a estadia do paciente, exames e
diagnósticos.
CIVIL. INDENIZAÇÃO. MORTE.
CULPA. MÉDICOS. AFASTAMENTO. CONDENAÇÃO. HOSPITAL.
RESPONSABILIDADE. OBJETIVA. IMPOSSIBILIDADE. 1
-A responsabilidade dos hospitais, no que tange à atuação
técnico-profissional dos médicos que neles atuam ou a eles sejam
ligados por convênio, é subjetiva, ou seja, dependente da
comprovação de culpa dos prepostos, presumindo-se a dos
preponentes. Nesse
sentido são as normas dos arts. 159, 1521, III, e 1545 do Código
Civil de 1916 e, atualmente, as dos arts. 186 e 951 donovo Código
Civil, bem com a súmula 341 -STF (É presumida a culpa do patrão ou
comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.). 2
- Em razão disso, não se pode dar guarida à tese do acórdão de,
arrimado nas provas colhidas, excluir, de modo expresso, a culpa dos
médicos e, ao mesmo tempo, admitir a responsabilidade objetiva do
hospital, para condená-lo a pagar indenização por morte de
paciente. 3 -O
art. 14 do CDC, conforme melhor doutrina, não conflita com essa
conclusão, dado que a responsabilidade objetiva, nele prevista para
o prestador de serviços, no presente caso, o hospital,
circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente
relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou
seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação),
instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem,
exames, radiologia), etc e não aos serviços técnicos-profissionais
dos médicos que ali atuam, permanecendo estes na relação
subjetiva de preposição (culpa). 4 -Recurso especial conhecido e
provido para julgar improcedente o pedido. (REsp 258.389/SP, Rel.
Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 16.06.2005, DJ
22.08.2005 p. 275)
Nesta mesma esteira de raciocínio
a decisão emanada do REsp 629.212/RJ:
RESPONSABILIDADE CIVIL.
CONSUMIDOR. INFECÇÃO HOSPITALAR. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO
HOSPITAL. ART. 14 DO CDC. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. O
hospital responde objetivamente pela infecção hospitalar, pois esta
decorre do fato da internação e não da atividade médica em si. O
valor arbitrado a título de danos morais pelo Tribunal a quo não se
revela exagerado ou desproporcional às peculiaridades da espécie,
não justificando a excepcional intervenção desta Corte para
revê-lo. Recurso especial não conhecido. (REsp 629.212/RJ, Rel.
Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 15.05.2007, DJ
17.09.2007 p. 285)
E esta outra ementa de decisão
ainda mais recente (dezembro de 2008), adiante transcrita, lapida o
entendimento de que a responsabilidade objetiva do hospital só tem
lugar quando resta claro que houve falha do serviço ou, para usar a
linguagem do CDC, fato do serviço. Ou seja, um acontecimento danoso
decorrente da má prestação do serviço hospitalar.
RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO
MÉDICO. NEGLIGÊNCIA. INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. 1. A doutrina
tem afirmado que a responsabilidade médica empresarial, no caso de
hospitais, é objetiva, indicando o parágrafo primeiro do artigo 14
do Código de Defesa do Consumidor como a norma sustentadora de tal
entendimento. Contudo,
a responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano
decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e
exclusivamente ao hospital.
Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao
profissional médico, mormente quando este não tem nenhum vínculo
com o hospital – seja de emprego ou de mera preposição –, não
cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar. 2. Na
hipótese de prestação de serviços médicos, o ajuste contratual –
vínculo estabelecido entre médico e paciente – refere-se ao
emprego da melhor técnica e diligência entre as possibilidades de
que dispõe o profissional, no seu meio de atuação, para auxiliar o
paciente. Portanto, não pode o médico assumir compromisso com um
resultado específico, fato que leva ao entendimento de que, se
ocorrer dano ao paciente, deve-se averiguar se houve culpa do
profissional – teoria da responsabilidade subjetiva. No entanto,
se, na ocorrência de dano impõe-se ao hospital que responda
objetivamente pelos erros cometidos pelo médico, estar-se-á
aceitando que o contrato firmado seja de resultado, pois se o médico
não garante o resultado, o hospital garantirá. Isso leva ao
seguinte absurdo: na hipótese de intervenção cirúrgica, ou o
paciente sai curado ou será indenizado – daí um contrato de
resultado firmado às avessas da legislação. 3. O cadastro que os
hospitais normalmente mantêm de médicos que utilizam suas
instalações para a realização de cirurgias não é suficiente
para caracterizar relação de subordinação entre médico e
hospital. Na verdade, tal procedimento representa um mínimo de
organização empresarial. 4. Recurso especial do Hospital e
Maternidade São Lourenço Ltda. provido. (REsp 908.359/SC, Rel.
Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE
NORONHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/08/2008, DJe 17/12/2008)
Em
fecho, transcreva-se ainda ementa de decisão recente (novembro de
2008) cujo objeto fora um erro
de diagnóstico, onde fora caracterizada a responsabilidade objetiva
do hospital.
AGRAVO
REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ERRO
MÉDICO. DIAGNÓSTICO DE GESTAÇÃO GEMELAR. EXISTÊNCIA DE UM ÚNICO
NASCITURO. DANO MORAL CONFIGURADO. EXAME. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I
- O exame ultrassonográfico para controle de gravidez implica em
obrigação de resultado, caracterizada pela responsabilidade
objetiva.
II - O erro no diagnóstico de gestação gemelar, quando existente
um único nascituro, resulta em danos morais passíveis de
indenização. Agravo regimental improvido. (AgRg no Ag 744.181/RN,
Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2008,
DJe 26/11/2008)
5.
Conclusão
Feitas
estas breves análises das recentes decisões do STJ, conclui-se, sem
a necessidade de se envidarem grandes elucubrações, que o atual
panorama da responsabilidade médico-hospitalar interpretada pelo STJ
caminha com seu foco orientado para a aferição da conduta do
profissional médico quando o fato determinante da lide versar sobre
a atividade médica em si e, noutra ponta, quando a controvérsia for
atribuída a falha no serviço nosocomial, não se irá perquirir a
conduta culposa, mas apenas se houve ou não uma falha na prestação
do serviço que causou um dano ao paciente, caracterizando-se, assim,
um fato do serviço hospitalar, com a consequente responsabilidade
objetiva do hospital. Partindo destas premissas, o operador do
direito terá condições de manejar suas teses de defesa (ou
petições iniciais) de modo um pouco mais seguro, consciente, desde
o início da lide, de qual prova se faz necessária para a consecução
do resultado que se pretende no feito.